A Resolução do CFM nº 2323/2022 é uma das Resoluções mais importantes no arcabouço ético da Medicina e já foi reeditada algumas vezes desde seu nascedouro, ao revogar normativos anteriores, vale dizer, as Resoluções nº 1488/98, 1810/2006, 2183/18, 2297/21.
Ainda na vigência da Resolução anterior, nº 2297/21, já havia escrito um artigo apontando vícios materiais relevantes (vide: < https://www.saudeocupacional.org/2021/12/analise-critica-sob-a-otica-do-direito-medico-acerca-da-resolucao-cfm-no-2297-2021.html > acessado em 17/06/2024) e que se mantiveram na atual redação.
Destacamos que a ementa mantém um reiterado equívoco ao não mencionar que a Resolução também abrange a Perícia Médica. Ao avaliar todo o normativo, temos que o mesmo aborda a perícia médica, administrativa e judicial, especialmente na interface trabalhista e previdenciária, em quase todos os artigos da referida Resolução.
Senão vejamos:
I- Artigo 1º (“§3º O médico do trabalho pode discordar dos termos de atestado médico emitido por outro médico desde que registre no prontuário os achados clínicos que justifiquem a discordância e após realizado o devido exame clínico do trabalhador” – PERÍCIA ADMINISTRATIVA);
II- Artigo 2º (estabelecimento do nexo causal entre os transtornos de saúde e as atividades do trabalhador – PERÍCIA ADMINISTRATIVA E JUDICIAL, TRABALHISTA E PREVIDENCIÁRIA);
III- Artigo 3º (IV – procedimento de emissão de CAT – PERÍCIA ADMINISTRATIVA);
IV- Artigo 9º (avaliação da capacidade laboral do obreiro pelo médico do trabalho, perito ou junta médica – PERÍCIA ADMINISTRATIVA OU JUDICIAL, TRABALHISTA E PREVIDENCIÁRIA);
V- Artigo 10 (Contestação do nexo ao perito previdenciário junto ao INSS – PERÍCIA ADMINISTRATIVA);
VI- Artigo 11 (fornecimento de cópia do prontuário médico em ações judiciais – PERÍCIA JUDICIAL);
VII- Artigo 12 (atuação do médico do trabalho enquanto assistente técnico da empresa – PERÍCIA JUDICIAL);
VIII- Artigo 13 (vedação do médico do trabalho da empresa atuar como perito judicial, securitário ou previdenciário que envolva a firma contratante, atual e passada);
IX- Artigo 14 (deveres do perito judicial e assistente técnico – PERÍCIA JUDICIAL);
X- Artigo 15 (perito médico judicial indicado pelo juízo);
XI- Artigo 16 (prerrogativa do perito judicial em oficiar médico e estabelecimentos de saúde).
XII – Artigo 17 (estabelece que esta Resolução não se aplica aos médicos peritos previdenciários).
Neste breve resumo, constatamos que a Perícia Médica é tratada em 12 (doze) artigos diferentes e sequer é mencionada na ementa, o que demonstra uma inadequação formal.
Portanto, retomo a reavivada sugestão que salientei no ano de 2021:
EMENTA: dispõe de normas específicas para médicos que atendem o trabalhador E PERÍCIA MÉDICA.
Não obstante a ementa, há que se REVER o artigo 17, também por inadequação formal.
Explico melhor.
O art. 17 estabelece in verbis:
“Esta Resolução não se aplica aos médicos peritos previdenciários cuja atuação tem legislação própria, ressalvando-se as questões éticas do exercício profissional.” (Grifo nosso)
Pois bem, a Resolução apresenta diversos procedimentos atinentes à perícia administrativa relacionada à questão previdenciária junto ao INSS, em total simbiose com os normativos expedidos pela autarquia e utilizados pelos Médicos peritos federais.
Vejamos alguns exemplos:
I- Emissão da CAT pelo Médico do Trabalho da empresa (regulado pela IN nº 45, art. 357, §3º do INSS);
II- Recebimento de relatório do médico assistente ou do médico do trabalho da empresa encaminhando o trabalhador para o INSS, afastando ou caracterizando o nexo ocupacional, para a perícia médica, podendo inclusive o segurado estar acompanhado pelo médico de sua confiança no ato pericial, em junta médica administrativa (regulado pelo art. 42, §2º da lei nº 8213/91);
III- Caracterização da incapacidade e nexo ocupacional na perícia do INSS (regulado pelo art. 3º, § único, IN 16/2007, INSS);
IV- Ações judiciais em juizado especial federal em desfavor do INSS, no qual o perito federal pode participar com assistente técnico do INSS no litígio (regulado pelo art. 30, 3º, inciso III, da lei 13846/19);
V- Contestação administrativa do Médico do Trabalho da natureza acidentária do benefício concedido ao segurado pelo INSS (regulado pela IN 31/2008 do INSS).
O Perito Médico Federal do INSS é antes de tudo um médico com expertise na avaliação do nexo causal e da (in) capacidade laborativa do segurado. Portanto, ao conceder ou negar um benefício, ele o faz por meio dos elementos técnicos de que dispõe para definir sobre estas questões (ou seja, capacidade laboral e natureza previdenciária/acidentária do benefício).
Neste sentido, o Perito do INSS utiliza integralmente dos elementos constantes no art. 2º da Resolução CFM nº 2323/2022 que estabelece, in verbis:
“Art. 2º Para o estabelecimento do nexo causal entre os transtornos de saúde e as atividades do trabalhador, além da anamnese, do exame clínico (físico e mental), de relatórios e dos exames complementares, é dever do médico considerar:
I– A história clínica e ocupacional atual e pregressa, decisiva em qualquer diagnóstico e/ou investigação de nexo causal;
II– O estudo do local de trabalho;
III– O estudo da organização do trabalho;
IV– Os dados epidemiológicos;
V– A literatura científica;
VI– A ocorrência de quadro clínico ou subclínico em trabalhadores expostos a riscos semelhantes;
VII– A identificação de riscos físicos, químicos, biológicos, mecânicos, estressantes e outros;
VIII– O depoimento e a experiência dos trabalhadores;
IX– Os conhecimentos e as práticas de outras disciplinas e de seus profissionais, sejam ou não da área da saúde. (Grifo nosso)
Fica então claro que os dispositivos desta Resolução se aplicam aos Peritos federais, ainda que o art. 17 expresse esta exclusão!
A grande questão é que, diferentemente dos médicos do trabalho e assistente, o Perito Federal é representa o Estado e neste caso, sua atuação é mais ampla, podendo ter acesso a outros elementos de prova que os demais players (médico assistente e médico do trabalho da empresa) não tem como os obter.
Pelo Princípio da Cooperação, o Perito Federal pode ter acesso privilegiado a informações do segurado em seu sistema próprio, em sistema interligado do INSS a outros órgãos (Ex. pode verificar se há CNES ativo do segurado, a despeito do afastamento), pode requerer/diligenciar informações aos outros órgãos de Estado (CERET’s, Vigilância Sanitária, Auditoria Fiscal do Trabalho, Ministério Público, órgãos do Poder Judiciário, dentre outros), ampliando enormemente seu poder investigativo.
Em suma é equivocado dizer que “Esta Resolução não se aplica aos médicos peritos previdenciários cuja atuação tem legislação própria” (art. 17); na realidade o correto seria dizer que:
“Esta Resolução se aplica aos médicos peritos previdenciários que, em virtude de legislação própria, não estão adstritos a esta Resolução para investigação do nexo causal e avaliação da capacidade laboral”.
Urge rever estes conceitos!
Um abraço a todos.
Fonte:
< https://www.saudeocupacional.org/2021/12/analise-critica-sob-a-otica-do-direito-medico-acerca-da-resolucao-cfm-no-2297-2021.html > acessado em 17/06/2024
SOUZA, Rodrigo Tadeu De Puy e. Curso de Perícia Médica administrativa e judicial, 278 páginas. Editora Lujur, 2024. Link para adquirir a obra: https://www.lujur.com.br/livros/previdencia-social/curso-de-pericia-medica-administrativa-e-judicial-p
RODRIGO TADEU DE PUY E SOUZA
Médico especialista em Patologia e Medicina do Trabalho. Mestre em Patologia. MBA em Auditoria em Saúde. Advogado especialista em Direito Médico e Direito do Trabalho. Palestrante. Autor das obras: “Novo Código de Ética Médica: aspectos práticos e polêmicos”, editora CRV; “Documentos médicos comentados”, “Tratado de Direito Médico ético” e “Curso de Perícia Médica administrativa e judicial”, editora CRV.
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