Primeiramente, antes de enfrentarmos esta intrigante pergunta, compete-nos refletir acerca do conceito desta entidade e como se estabelece o diagnóstico em si.
A Síndrome de Burnout é descrita conceitual e originalmente por Freudenberger (FB) (1981) na obra “Burnout: How to beat the high cost of Sucess”. De forma muito simplificada ele a qualifica como uma manifestação clínica cuja gravidade é variável entre as pessoas (sentimento de exaustão e fadiga; baixa imunidade; dores de cabeça; perturbações gastrointestinais; insônia; falta de ar; irritabilidade fácil; labilidade emocional, dentre vários outros) cuja personalidade envolvida seria limitada àquelas dinâmicas, determinadas, carismáticas ou idealistas, vale dizer, um trabalhador medíocre jamais poderia atingir este estado. Ademais, o Burnout teria causas diversas, não apenas o trabalho.
Por sua vez, Christina Maslach elabora o consagrado Maslach Burnout Inventory (MBI), conhecido como “medidor de Burnout” que coloca como o trabalho como fator único e suficiente para causar a síndrome. Ao contrário de FB, Maslach enaltece mais os fatores situacionais vinculados ao trabalho do que os fatores individuais (ex. personalidade) como causadores da síndrome. Neste sentido, Maslach propõe três (03) dimensões da síndrome: 1º – exaustão emocional, 2º – despersonalização ou cinismo, 3º – baixa realização profissional. Neste conceito, Maslach ora afirma que Burnout é doença, ora afirma o contrário. Para a autora, existem seis (06) áreas de discordância/concordância entre o trabalhador e o trabalho como promotores de Burnout e engajamento, em pólos opostos:
*Fonte: “O que ninguém te contou sobre o Burnout: aspectos práticos e polêmicos”, p.110, editora Mizuno, autor Marcos Mendanha.
Em que pese tais conceituações, a mais recente da Organização Mundial da Saúde (OMS) está estampada na Classificação Internacional das Doenças, CID-11 da seguinte forma:
“Burnout é uma síndrome conceituada como resultante do estresse crônico no local de trabalho que não foi gerenciado com sucesso. Caracteriza-se por três dimensões: I) sentimentos de esgotamento ou exastão de energia; 2) aumento da distância mental do trabalho, ou sentimentos de negativismo ou cinismo em relação ao trabalho; 3) uma sensação de ineficácia e falta de realização. Burnout refere-se especificamente a fenômenos no contexto ocupacional e não deve ser aplicado para descrever experiências em outras áreas da vida. ” (Grifo nosso)
Atualmente está categorizado no código QD85 no subgrupo “problemas relacionados ao emprego ou desemprego” e exclui “outras dificuldades físicas ou mentais relacionadas ao trabalho”.
Diante do conceito da CID-11 temos que revisitar o conceito de doença e de síndrome.
Tecnicamente, “síndrome é um conjunto reconhecível, constante e estável de sinais e sintomas que indicam uma condição específica e para a qual uma causa direta (etiologia) não foi totalmente compreendida ou é desconhecida. ” (Dalgalarrondo, 2019). (Grifo nosso)
Para a caracterização da doença, por sua vez, é necessário a identificação de dois (02) dos seguintes critérios (OMS):
I – Agente etiológico reconhecido; II – grupo identificável de sinais ou sintomas; III – alterações anatômicas ou psicopatológicas.
Neste sentido, os transtornos mentais em sua maioria não têm agente etiológico suficientemente definido, ao contrário das doenças orgânicas. Entretanto, nada impede de serem chamadas de doenças mentais.
À título de exemplo, seriamos capazes de reconhecer a COVID-19, conforme as manifestações e comemorativos da doença, associados ao exame complementar diagnóstico; não fazendo o último, teríamos uma síndrome viral no qual teríamos a suspeição acerca do agente.
A Síndrome de Burnout não atende ao critério técnico de uma síndrome por alguns motivos. Vejamos.
1º – O conceito de síndrome requer uma estabilidade de sinais e sintomas, o que não é encontrada no Burnout;
2º – Há um número exagerado de sinais e sintomas no qual em tese o paciente poderia apresentar o Burnout (mais de 100 possíveis, o que restaria abrangido em outras entidades clinicas médicas relevantes, mentais e orgânicos);
3º – O quadro clínico do Burnout previsto na CID-11 é descrito de forma muito genérica e inespecífica cujo excerto permita-me ao leitor novamente reproduzir: “Caracteriza-se por três dimensões: I) sentimentos de esgotamento ou exastão de energia; 2) aumento da distância mental do trabalho, ou sentimentos de negativismo ou cinismo em relação ao trabalho; 3) uma sensação de ineficácia e falta de realização. ”
4º – Síndromes diferentes exigem diagnósticos diferenciais entre si: uma criança só é distinguida da outra em virtude de características ímpares que a torne diferente da outra, a despeito de serem gêmeas, inclusive! Neste sentido, duas ou mais entidades podem se assemelharem muito, todavia devem ser capazes de serem separadas em critérios diferenciáveis/reconhecíveis, como o próprio conceito exige. O médico diferencia uma síndrome maníaca de uma síndrome psicótica, por exemplo, pelos achados que as individualizam.
5º – O termo síndrome tende a individualizar e padronizar o tratamento (terapia, fármacos), o que não foi observado no Burnout. Não há protocolo de tratamento.
Para a CID-11, o diagnóstico da Síndrome de Burnout deve ser de exclusão de diversas outras entidades patológicas, e é categorizada como uma “reação vivencial normal” (Jaspers, 1979). O que diferencia entre esta (reação vivencial normal) e uma doença/transtorno mental é a INTENSIDADE do prejuízo e do SOFRIMENTO que os sintomas provocam no indivíduo.
Se o prejuízo e o sofrimento causados pelos sintomas são intensos, o fenômeno é classificado como uma doença/transtorno mental, o que não se verifica na Síndrome de Burnout. Portanto, por questão conceitual, o Burnout não é um quadro grave, quando comparado a qualquer transtorno/doença mental.
Antes de atingir o quadro franco da doença, a CID-11 estabelece os conceitos de entidades que não são consideradas doenças, o cansaço (MB 22.7) e a fadiga (MG 22). Cansaço é “uma sensação de alerta reduzido e uma diminuição concomitante da acuidade mental, em alguns casos resultando em um impulso ou tendência a adormecer. ” Por fadiga, entende-se um estágio posterior, resultante do acúmulo de cansaço que não foi solucionado.
*Fonte: “O que ninguém te contou sobre o Burnout: aspectos práticos e polêmicos”, p.166, editora Mizuno, autor Marcos Mendanha.
As três dimensões conceituais da Síndrome de Burnout guardam similitude com o conceito de “Fadiga” que se “trata de uma sensação de exaustão, letargia ou diminuição da energia, geralmente experimentada como um enfraquecimento ou esgotamento dos recursos físicos ou mentais e caracterizada por uma capacidade diminuída de trabalho e eficiência reduzida em responder estímulos”.Portanto, todo Burnout seria considerado fadiga; mas nem toda fadiga seria Burnout, em virtude das causas extraocupacionais que poderiam ser relacionar à fadiga.
*Fonte: “O que ninguém te contou sobre o Burnout: aspectos práticos e polêmicos”, p.168, editora Mizuno, autor Marcos Mendanha.
Neste sentido, se o Burnout é causado por estresse crônico advindo do trabalho, alguém que “não trabalha” não poderia ser acometido pela entidade.
Em sendo relacionado ao trabalho, estaria classificada como Schilling I, trabalho como causa necessária, com indiscutível nexo de causalidade.
Ressaltamos que não pode ser considerado como concausa, por ser um diagnóstico de exclusão, não podendo ser enquadrado como Schilling II (trabalho como fator contributivo, mas não necessário) ou III (trabalho como provocador de um distúrbio latente, ou agravador de doença já estabelecida).
Feitas estas considerações vamos à pergunta: Atestar a Síndrome de Burnout na CID-11 é ato médico?
Conforme o art. 4º, inciso XIII, da Lei 12.842/2013 (lei do ato médico) temos que é “atividade privativa do profissional médico a atestação médica de condições de saúde, doenças e possíveis sequelas.”
Diante do exposto, profissionais de saúde não médicos irão questionar: “Ora, você está sendo contraditório, pois se o Burnout é uma reação vivencial normal, não seria doença e, portanto, um psicólogo poderia realizar esta atestação em saúde. ”
Em que pese esta ponderação e a aparente contradição, vamos nos aprofundar na resposta, pois afinal “o buraco é mais embaixo”.
A Síndrome de Burnout NUNCA será a primeira possibilidade diagnóstica, mas ao contrário, a ÚLTIMA, pois se trata de um diagnóstico de exclusão prévia e confirmada de doenças ou outros transtornos mentais, assim reconhecidos pela CID-11 e DSM-5.
Então a pergunta correta neste momento seria: “Quem pode excluir uma doença, senão aquele que pode confirmá-la?
Sem dúvida, aquele que tem competência legal e privativa de atestá-la, ou seja, o médico.
Ademais, o médico tem DUAS ETAPAS para seguir na sua avaliação:
1º – Confirmar a exclusão de doenças e transtornos mentais no periciado;
2º – Avaliar o nexo de causalidade entre o Burnout com as atividades desempenhadas pelo indivíduo no trabalho, conforme preconiza o art. 2º da Resolução do CFM Nº 2297/2021 (Dispõe de normas específicas para médicos que atendem o trabalhador):
“Art. 2º Para o estabelecimento do nexo causal entre os transtornos de saúde e as atividades do trabalhador, além da anamnese, do exame clínico (físico e mental), de relatórios e dos exames complementares, é dever do médico considerar:
I – A história clínica e ocupacional atual e pregressa, decisiva em qualquer diagnóstico e/ou investigação de nexo causal;
II – O estudo do local de trabalho;
III – O estudo da organização do trabalho;
IV – Os dados epidemiológicos;
V – A literatura científica;
VI – A ocorrência de quadro clínico ou subclínico em trabalhadores expostos a riscos semelhantes;
VII – A identificação de riscos físicos, químicos, biológicos, mecânicos, estressantes e outros;
VIII – O depoimento e a experiência dos trabalhadores;
IX – Os conhecimentos e as práticas de outras disciplinas e de seus profissionais, sejam ou não da área da saúde.
Parágrafo único. Ao médico assistente é vedado determinar nexo causal entre doença e trabalho sem observar o contido neste artigo e incisos. ”
Finalmente, deixo o último questionamento: “Um psicólogo poderia atestar o diagnóstico de Síndrome de Burnout, conforme CID-11? ”
Considerando o art. 13 da Lei nº 4.119/1962 e o art. 10º da Resolução CFP nº 06/2019, o profissional de psicologia tem competência para emitir o “atestado psicológico”, fundamentado no “diagnóstico psicológico” que não corresponde ao diagnóstico nosológico mencionado na lei do ato médico. A finalidade do diagnóstico psicológico é afirmar as condições psicológicas do indivíduo e não diagnosticar transtornos ou doenças mentais.
Neste norte, em âmbito de perícia judicial, sob pena de não ser questionado acerca de afronta legal ou negligência, o profissional de psicologia poderia atestar o diagnóstico de Síndrome de Burnout pela CID-11 DESDE QUE amparado de um laudo oficial pericial médico que tenha confirmado a exclusão de qualquer doença mental e estabelecido o nexo de causalidade. Portanto, apenas nesta circunstância seria possível, o que factualmente seria despicienda sua atuação, considerando a prévia atuação do médico ao esclarecimento do juízo. Restaria redundante o papel do psicólogo em confirmar o ato médico pretérito.
Um forte abraço,
Autor: Rodrigo Tadeu de Puy e Souza – Médico do Trabalho e Anatomopatologista. Advogado especialista em Direito Médico e Direito do Trabalho. Mestre em Patologia.
O Dr. Rodrigo Tadeu de Puy e Souza escreve periodicamente para o SaudeOcupacional.org, na “Coluna do Puy”. Contatos: @depuyrodrigo ; www.rodrigodepuy.com.br
Obs.: esse texto traduz a opinião pessoal do colunista Rodrigo Tadeu de Puy e Souza, não sendo uma opinião institucional do SaudeOcupacional.org.
*Fonte: “O que ninguém te contou sobre o Burnout: aspectos práticos e polêmicos”, editora Mizuno, autor Marcos Mendanha.
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